Com uma identidade brasileira, Deserto Particular ensina sobre amor, traumas e preconceito
Deserto Particular chega às salas de cinemas de todo o Brasil com um peso importante. O longa de Aly Muritiba (Ferrugem, Jesus Kid, Caso Evandro) já foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o País na disputa por uma vaga entre os concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, além de ter vencido o Prêmio do Público no último Festival de Veneza. E, para falar a verdade, o filme faz jus a todo esse respaldo, contando uma história muito peculiar de um policial que comete um erro. Ao se ver isolado na vida e com as consequências que podem lhe custar toda a carreira, ele larga tudo para encontrar uma mulher com a qual se corresponde por celular, mas que nunca viu pessoalmente.
Desde os primeiros segundos de tela do filme, sabemos que estamos diante de uma obra realmente forte. Com uma qualidade de som e imagens que saltam aos olhos, vemos os três principais nomes do filme, Antonio Saboia, Pedro Fasanaro e Thomas Aquino (Bacurau) brilharem. Muritiba consegue sintetizar todas as camadas de cada um deles, principalmente de Saboia, como o policial Daniel, e de Fasanaro, com um papel “duplo”. Ambos passam a humanidade e todo o turbilhão de sensações necessários para que a história tenha sua devida evolução. É de certa forma compensador ver as suas atuações.
Deserto Particular é um filme que fala de amor, relacionamentos e identidades e suas consequências. De vários tipos. Daniel cuida do pai idoso em casa, ao mesmo tempo que lida com sua suspensão da Polícia de Curitiba. Desde cedo vemos que algo grave aconteceu, e aos poucos, vamos tendo a dimensão disso. E sua história se mistura a de Sara, que vive a milhares de quilômetros, na cidade de Juazeiro, no interior da Bahia. Ela surge como um oásis na vida do militar, aliviando suas tensões, mesmo que o relacionamento nunca tenha saído da esfera virtual, mais especificamente da troca de carinho, fotos e cumplicidade no Whatsapp. É onde Daniel encontra um refúgio para o caos que está vivendo. Sua relação com Sara vai sendo melhor explicada com a decisão desesperada de pegar o carro e cruzar o País para ir ao encontro da mulher que tanto lhe faz bem, mas, que por algum motivo, parou de lhe responder no aplicativo de mensagens instantâneas. E é só depois de quase 30 minutos que vemos os créditos iniciais, mostrando que há muito por vir em toda a saga de Deserto Particular.
Em um recorte de road-movie, Aly Muritiba costura duas faces bem distintas do Brasil. O grande centro metropolitano de Curitiba, cinza e com poucas cores, vai dando lugar ao árido “deserto” de Juazeiro. Até Daniel chegar lá com sua D-20 anos 90, vemos muitos cenários que sintetizam um pouco deste mar de areia em que ele está vivendo, e agora, literalmente e fisicamente, passando. A fotografia ganha cores e o filme ganha uma sonoridade muito brasileira, ainda que se ampare muito no clássico oitentista de Bonnie Tyler “Total Eclipse of The Heart” para trilhar a relação de Daniel e Sara. Tudo sempre jogando a favor de nossa imersão no filme.
A partir daí, ao mesmo tempo que vemos duas diferentes caras de um mesmo Brasil, vemos uma desconstrução do relacionamento dos dois. Na pele de Sara se justifica a confusão que faz Daniel tomar algumas medidas desesperadas, enquanto, de certa forma, ele ainda está cego com tantos traumas. Até que o público chegue ao encontro dos dois personagens, temos um caminho interessante a percorrer, tanto na estrada, quanto na mente de Daniel. E quando as primeiras revelações chegam, fica difícil imaginar o rumo que a história pode seguir. Sintetizando preconceitos da sociedade e nos colocando no olhar de Sara, Aly Muritiba ajuda a perceber visões tão raivosas que aparecem em nossa sociedade. Visões que às vezes surgem de lugares que deveriam amparar e incluir, mas que nesse tema em específico, parecem só jogar contra, propondo a divisão no lugar da união e a cura de algo que sequer é uma doença.
Deserto Particular acaba sendo pedagógico ao descortinar muitos tabus da sociedade, que costuma não aceitar o diferente, por mais que esse ‘diferente’ já seja tão ou mais normal na vida, desde que o mundo é mundo. E aqui não entro diretamente na temática de forma tão abrupta, pois acredito que isso poderia estragar sua experiência ao assistir o filme, principalmente pela principal revelação, que fica bem óbvia em tela. Como o próprio Aly Muritiba (que divide o roteiro com Henrique dos Santos) vem defendendo, Deserto Particular é um filme sobre o amor. Um filme necessário nos tempos de cólera que vivemos, com intolerância desenfreada e a falta de respeito com opções muito particulares dos indivíduos. Por tudo isso, o filme merece estar na posição de destaque, e seria incrível vê-lo na cerimônia do Oscar de 2022, provando a qualidade do cinema nacional e o quanto ele pode quebrar barreiras.
A Vigília Recomenda!